Judicialização da saúde tem criado SUS de duas portas
Por Octavio Luiz Motta Ferraz e Daniel Wei Liang Wang
* Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo no dia 22/6/2014
A vida não tem preço!, bradam os defensores da mais recente decisão da Justiça brasileira obrigando o Estado a custear tratamento de saúde no exterior. O caso, como todos os outros nesta seara, é trágico.
Um bebê de cinco meses cuja única esperança, ainda que tênue, é uma operação de altíssimo custo. Poucos hospitais brasileiros têm condições de realizar o complexo procedimento (transplante multivisceral), ainda experimental, mas nenhum deles entende que o paciente se enquadre nos critérios exigidos no Brasil para que a operação tenha mínimas chances de sucesso. A última opção da família é levar o bebê aos Estados Unidos, onde um cirurgião se dispõe a realizar o procedimento. O preço: R$ 2 milhões.
Para muitos, a questão é simples. Como "a vida não tem preço" e a Constituição Federal garante a saúde como um direito fundamental e um dever do Estado, o governo deve gastar o que for necessário para tentar salvá-la. Negando-se a cumprir esta obrigação, cabe ao Judiciário forçá-lo, salvando assim uma vida posta em risco pelo "negligente", "incompetente" e "corrupto" Estado brasileiro. Seria ótimo se o problema fosse tão simples assim.
De fato, a vida não tem preço no sentido de um valor monetário de mercado. Não se pode comprar ou vender uma vida. Mas o cuidado à saúde tem preço, e muito alto. Médicos, enfermeiras e auxiliares têm salários. Remédios, próteses, exames, cirurgias, hospitais, ambulâncias custam caro. Como o presente caso demonstra, quando estão em questão novas tecnologias ou tratamentos experimentais, esses custos podem aumentar exponencialmente.
O Estado brasileiro gasta pouco com o sistema de saúde em comparação com outros países, mas nem que dobrasse ou triplicasse seus gastos e acabasse da noite para o dia com a corrupção e a ineficiência, poderia fornecer a toda a população o melhor e mais moderno tratamento possível disponível. Nenhum país poderia.
Nesse contexto de custos altos e crescentes e de recursos limitados, o dever do Estado é alocar os recursos disponíveis de forma equitativa à população. Essa tarefa é sem dúvida das mais inglórias que existem, não apenas pela tragicidade das escolhas, mas também pela escassez atual de critérios claros, consensuais e objetivos para realizá-la. A judicialização da saúde nos moldes em que vem sendo praticada no Brasil não resolve nem ajuda a resolver esse complexo problema, muito pelo contrário. De acordo com estimativa conservadora, foram gastos quase R$ 1 bilhão com judicialização da saúde no ano passado. A estimativa é conservadora porque não inclui, por falta de dados, o gasto dos municípios, de 17 Estados e do Distrito Federal. O dinheiro para o cumprimento das decisões não sai do bolso do corrupto ou da redução da ineficiência, mas do orçamento disponível para o cuidado de saúde de toda a população.
Não se coloca em questão, evidentemente, o valor da vida e da saúde do bebê ou de qualquer outro cidadão brasileiro que entre na Justiça para pleitear tratamento médico. Mas esse mesmo valor, e os direitos correspondentes, aplicam-se à vida e à saúde de toda a população. Negar um tratamento não significa necessariamente ignorar o valor da vida e da saúde do demandante, mas dar-lhe o mesmo valor que à vida e à saúde de todos que também dependem do sistema.
A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem preço" e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que, inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra porta.
O argumento daqueles que defendem incondicionalmente a judicialização como simples proteção da vida deve portanto ser adaptado para exprimir seu verdadeiro sentido: "A vida não tem preço, mas a vida de alguns tem menos preço que a vida de outros".
Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-jun-22/judicializacao-saúde-criado-sus-duas-portas
11 Comentários
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Parabéns pelo texto, a colocação "Sus de duas portas" caiu como uma luva no contexto que vivemos atualmente. continuar lendo
Realmente, se continuar nessa marcha de recursos para atender demandas individuais em tratamentos fora do cotidiano da saúde, não demora muito teremos uma minoria sendo atendida por via judicial e outra grande maioria sem nenhum atendimento por falta de recursos financeiros. O orçamento público é limitado e as necessidades da saúde parece infinita. continuar lendo
Bom dia Fernanda. Ótimo seu texto. Gostei muito. Mas ainda temos aqueles que não usam a "outra porta" por se tratar de saúde que não demanda risco de vida. Acredito sim que a vida não preço, que todos temos direito à saúde. A culpa, lógico, é do estado, que deveria ser provedor pois a arrecadação é imensa. Não concordo que devamos alocar a outra parte da moeda, devemos tipificar o problema da saúde, não quantificar. Com a tipificação dos problemas, ha recursos sim para cuidar daqueles que tem risco de vida. continuar lendo
Boa tarde. O texto é muito bom, lembrando exatamente o que ele diz. A saúde pública no Brasil é um buraco sem fim, não temos gestão. E ainda para justificar toda falta de recursos o Estado, pode lançar mão do principio da reserva do possível, alegando que impossível atender todas demandas exatamente por falta de recursos. continuar lendo